Nos 70 anos de sua morte, Mário de Andrade ganha primeira
biografia
Livro de Eduardo Jardim enfatiza a derrota do projeto
cultural do escritor
POR MAURÍCIO MEIRELES
22/02/2015 7:00 / ATUALIZADO 22/02/2015 8:01
RIO - Você já ouviu falar muito dele. Mário de Andrade
(1893-1945), afinal, foi por décadas uma figura central da cultura brasileira -
e seu nome ecoa até hoje. Teses foram escritas sobre ele. Suas cartas são
publicadas há 20 anos. Seus textos são estudados nas escolas. O papa do
modernismo, cuja morte completa 70 anos na próxima quarta-feira - fazendo com
que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016 -, será
homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, que acontece
em julho, e em uma série de lançamentos. Assim, parece o criador de um projeto
de arte e de um Brasil vitoriosos - mas não é bem assim.
Cartas inéditas, paris e antissemitismo
Uma carta fictícia de um Mário póstumo a um país vivo
Pelo menos não é essa avaliação de "Eu sou trezentos -
Mário de Andrade: vida e obra" (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional),
de Eduardo Jardim, primeira biografia de um homem visto por muito tempo como
"imbiografável" (por medo de que a abordagem sobre a sexualidade do
pensador pudesse gerar processos judiciais). O livro carrega uma visão mais
pessimista que o usual. O Mário de Andrade retratado por Eduardo Jardim não é
um vencedor, mas um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico e
de nação - para vê-lo derrotado no fim da vida.
- Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu
com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho -
afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-Rio. - Os
admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi
sacrificado pelo ponto de vista autoritário.
Os últimos anos do modernista, sobre os quais Jardim já
havia se debruçado em "Mário de Andrade - A morte do poeta"
(Civilização Brasileira, 2005), têm importância crucial nessa tese. Depois de
ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado
Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do
órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que
servisse a interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava
criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar
uma arte para estabelecer vínculos comunitários.
Com a demissão - acompanhada de acusações de corrupção -,
Mário muda-se para o Rio, onde entrega-se à bebida e fica afastado de amigos
queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passa a ocupar cargos menores no Ministério
da Educação e Cultura - incompatíveis com quem já tivera uma centralidade na
vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão
de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.
- O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como
um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um
intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha
um projeto antiautoritário, de inclusão - afirma Jardim.
Um dos momentos simbólicos de seu sentimento de derrota é
uma conferência em 1942, na qual Mário se mostra melancólico. Aproximando-se de
Murilo Miranda, Lúcio Rangel e Carlos Lacerda - à época comunistas -, ele adere
à ideia de uma arte de combate. E começa a cobrar de amigos um posicionamento
na luta política. Chega a defender que é preciso abdicar da arte para combater
o fascismo. Mas Eduardo Jardim não é pessimista.
- O modernismo é o movimento intelectual mais importante do
Brasil. Chamar a atenção para seu projeto frustrado convida a avaliar sua
importância. Sim, nosso horizonte histórico é muito diferente. A distância
possibilita a compreensão - afirma o autor.
Suporta homossexualidade intimidava candidatos a biógrafo
A suposta homossexualidade de Mário de Andrade sempre
intimidou candidatos a biógrafo. Os amigos do escritor jogaram um véu sobre o
tema - e, mesmo quando Manuel Bandeira publicou sua correspondência com o
amigo, muita coisa foi rasurada. Moacir Werneck de Castro foi o primeiro a
falar do assunto, em 1989, no livro "Mário de Andrade - Exílio no
Rio", não sem causar polêmica.
Eduardo Jardim não se esquivou da questão, mas não cita
casos amorosos do modernista. E mostra que definir o autor de
"Macunaíma" (1928) como gay não serve para rotulá-lo. A vivência do
erotismo marca vários de seus contos e poemas, afinal.
- A obra dele é marcada pela sexualidade num sentido mais
amplo que isso, com uma dimensão instintiva e sensual. Ele dizia que ficava
movido sensualmente por uma árvore, uma coisa de grande sensibilidade. E isso
surgia acompanhado de uma censura muito forte. Mário vivia sua sexualidade de
uma forma muito tensa. No conto "Frederico Paciência" isso aparece de
forma muito clara - diz Jardim, que mostrou o livro antes de ser publicado a
Carlos Augusto de Andrade Camargo, herdeiro do modernista, e afirma que não
recebeu nenhuma sugestão de mudança.
Até hoje, a Fundação Casa de Rui Barbosa guarda uma carta de
Mário para Bandeira, que foi lacrada quando o acervo do amigo do modernista foi
doado à instituição. Especula-se que ela conteria alguma informação sobre a sexualidade
de Mário. O segredo é tanto que há mesmo quem negue a existência da carta - mas
ela existe.
Os conflitos de sua vida sexual são só uma parte das tensões
que marcam a obra do modernista - e a tornam interessante, diz o biógrafo. Seu
pensamento estético funda-se numa oposição entre o lirismo e a inteligência;
entre o elemento nacionalista e o universal; a cultura letrada e a popular; o
instinto e a razão; e, no fim da vida, entre o artista e seu compromisso
político.
- Quando essa tensão se quebra, é o momento de crise na vida
dele - afirma Jardim.
O pesquisador, que fez entrevistas e voltou à ampla
correspondência de Mário, garimpou duas frases que mostram uma veia
antissemita. Em uma delas, comentando os retratos que Portinari e Lasar Segall
haviam pintado dele, o autor diz: "Como bom russo complexo e bom judeu
místico ele (Segall) pegou o que havia de perverso em mim. (...) A parte do
Diabo. Ao passo que Portinari só conheceu a parte do Anjo".
Embora tenha morrido frustrado, Mário de Andrade foi o
intelectual brasileiro mais importante do século XX, na visão de Jardim. Ele
defende, porém, que ainda não foi feita uma avaliação crítica do modernismo.
- Acho que toda tentativa de fazer "reviver" o
modernismo é bastante equivocada. Temos que medir a distância que nos separa.
Ele continua sendo a mais importante referência na nossa história intelectual,
mas devemos avaliá-lo criticamente - conclui Jardim.
Serviço
"Eu sou trezentos - mário de andrade: Vida e obra"
Autor: Eduardo Jardim
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