segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Conto: Cinema por Rafaela de Fátima Barbosa Santos

Para começo de história, era uma estudante normal. Passional do tipo “CDF”, com óculos, saia até os joelhos e cabelos trançados. Julieta era uma adolescente um tanto quanto diferente. Aos olhos de todos, ela simplesmente não existia. Nunca foi notada, percebida e deseja menos. Era desajeitada, andava mancando, e quando se arrumava, coitada, era melhor que não estivesse.
            A pobre que de pobre só se adjetivava seus modos, era podre de rica e sonhava com um casamento como o de seus pais. Nunca foi amada, e nem sabia direito o que era amar, dizia que amava porque todos diziam o mesmo nas telenovelas de que gostava.
Seus pais também a achavam muito desajeitada, e sentiam vergonha de levá-la nas reuniões de alta classe. Julieta, que nunca havia se apaixonado, sentia-se indigna de uma paixão e de ser desejada. Falava que quando se apaixonasse, saberia, porque sentira as borboletas no estômago como ouvira falar nas teledramaturgias.
            Quando chegou a época de vestibular, Julieta não se identificava com nada do que via nas listas de opções de cursos. Como era sonhadora, a infeliz Julieta, achava que seus sonhos enchiam os olhos alheios. Coitada, mal sabia que apenas os seus brilhavam com a falsidade que era sua vida vazia.
            Passava horas de frente à televisão, onde chorava, ria e falava com os atores. Seu sonho era ir ao cinema, mas uma vez sua avó lhe disse que lá é lugar de rapariga e só mulheres perdidas iriam para esses tipos de lugares. Julieta não sabia bem o que era rapariga, mas aceitava com respeito o que sua avó lhe dizia. Sempre aceitara tudo.
Conformava-se com o conforto do seu sofá e de sua televisão já colorida e nem ligava pelas zoações que eram feitas por seus amigos. Quando surgia algum comercial com chamado ao cinema, Julieta fechava os olhos e imaginava-se lá. Logo parava sua imaginação e pegava o terço, pois pensava estar pecando. Que felicidade insossa essa de Julieta, tão discreta e preta e branca como ela.
             Julieta tinha amigos, ou melhor, tinha uma amiga tão estranha quanto ela. A amiga insistia para que Julieta conhecesse novas pessoas e suplicava sua ida ao cinema. Julieta se afastava e com seus grossos livros ia à biblioteca, lugar que nada o habitava além dos livros velhos empoeirados e mofados e Dona Abigail, que apesar de ser detestada por todos da escola, era a melhor conselheira de Julieta.
Dona Abigail era a bibliotecária, viúva e com um tique no olho esquerdo que aterrorizava todos os alunos que se aproximavam dela, menos Julieta. Certa vez, quando Julieta comentou com ela sobre sua vontade de conhecer o cinema, Dona Abigail afirmou com o sorriso estampado:
-Cinema? Tenho grandes recordações de lá.
-Minha avó disse que é lugar de mulher da vida, que não posso ir lá. A senhora conhece?
-E-e-e-eu? Julieta, sou uma viúva de respeito e sai que já está na hora de sua aula.
-Mas é que já estou...
            E sem esperar que terminasse sua frase, Dona Abigail fechou a porta empurrando Julieta para fora. Julieta não entendeu muito bem, mas não se importou muito com as palavras ditas por Dona Abigail, sempre foi discreta e não insistia em seus pensamentos. Seguiu para casa onde podia ler, sonhar e desabafar em seu diário. Julieta não era mais uma adolescente, mas a sua inferioridade a fazia parecer infantil, pequena.
            Seus pais a interrogavam sobre sua decisão para o vestibular, queriam que prestasse concurso para Medicina, mas Julieta que mal podia ver seu próprio sangue não suportava a ideia.
-Você deve fazer o que pode dar uma vida confortável. Exclamava seu pai.
-Só falta querer ser modelo. Debochava sua mãe.
             Julieta não se conformava com sua indecisão, não entendia o porquê de tamanha rejeição de todos e sabia que não poderia ser modelo, muito menos bonita como as moças da tevê.
Escrevia sempre assim:... Essa vontade que me faz perder a razão, dizer sim quando se é não e fazer de tudo apenas confusão.
            Está tudo desenhado aqui, e o nome disso eu ainda desconheço..
E fechava seu diário grosso e cheio de papéis de bala. A frase de Julieta era complicada, esquisita e confusa como ela e nem a própria saberia explicar o porquê da escrita.
            Chegara o grande dia, o dia da escolha. Julieta estava triste e mentia estar decidida para todos da classe que zombavam-na dizendo :
-Julieta, por que você não faz literatura para decifrar esses versos malucos que faz?
-Ah, poderia fazer moda ou ser atriz, o que acha?
E caçoavam dela a todo tempo.
Em sua monotonia e distração, Julieta não respondia aos insultos e poucas vezes notava que era com ela. Como de costume, ia para seu refúgio conversar com os livros e com Dona Abigail.
-Preciso falar com a Senhora Dona Abigail. Precisa me contar mais sobre cinema, sei que é pecado mas penso nisso o dia inteiro.
Dona Abigail exclamou:
-Moça por algum acaso a senhorita pensa em ser atriz?
-Não, nunca pensei.
-Sabes que não tens beleza para isso.
-Sim, sei... Mas algo me fascina mais que a beleza das atrizes.
-Não consigo compreender, Julieta.
-Eu me imagino lá dentro, assistindo tudo, vendo tudo muito mais de perto. Mas essa história de rapariga me faz duvidar de toda arte, o que a senhora acha?
-Julieta, era esse livro que você queria?
Com a cabeça baixa e com a voz um pouco estremecida respondeu:
-Sim, este mesmo! Obrigada.
-Passe bem, boa tarde!
            E mais uma vez Julieta não desvendara a magia do cinema nem tão pouco compreendia o porquê da falta de respostas.
Julieta já estava começando a mudar, passara a questionar os assuntos.
No caminho, indo à sua casa, viu um outdoor que indicava um filme de Merlin Monroe. Julieta estava estática, seus olhos pela primeira vez se deixavam seduzir e reluziam junto com as luzes do outdoor. Foi empurrada por um senhor que passava pelo caminho. Ao esbarrar, derramou café quente em sua perna. Julieta, que nem notou as desculpas, continuou imóvel a observar. O senhor da bilheteria foi até a porta e perguntou se não gostaria de assistir, e lhe entregou o papel que indicava os horários. Julieta segurava o papel como quem segura um troféu. Lia, relia e permaneceu assim até chegar a casa.
Espantados pela hora, pois já marcavam às seis horas da noite; seus pais, que já a esperavam ao portão, perguntaram:
-Onde andava, Julieta?  Já viu a hora? E o vestibular?
Julieta entrou sem responder e pela primeira vez conseguiu causar preocupação em seus pais.
Abriu seu diário e colou na primeira folha já escrita, seu “bilhete”. Sentia-se no céu. Não conseguia ouvir uma só palavra de seus pais que a interrogavam, e já em sua cama adormeceu.
            No dia seguinte, pela manhã, Julieta resolve passar novamente à porta do cinema. Com a bilheteria ainda fechada, Julieta pede ao segurança que a deixe entrar.
-Está fechado, senhorita, não percebe? Exclamou o segurança ironicamente.
Respondeu que sim, e seguiu a entrar porta a dentro sem permissões. Julieta, pela primeira vez, não obedecia a uma ordem.
-Minha querida, você está com algum problema? Insistiu o segurança.
-Não, Senhor. Deixe-me ficar aqui sentada um pouco, eu pago se for preciso.
Mas não começou... E Julieta interrompeu com lágrimas nos olhos e exclamou:
-Por favor!
Sem entender, o segurança voltou a sua guarda, acendendo as luzes da sala.
Julieta estava nas nuvens, não acreditara que estava no lugar onde mais havia cobiçado por toda vida. Seus olhos refletiam todos os filmes que já havia visto, e sua imaginação captava cada detalhe daquele lugar. Ainda ali parada, fitava a cena que mais almejou e retinha dentro de si. Um misto de desejos consumia o coração de Julieta;  libertara-se da prisão que era sua curiosidade e descobria em si uma outra Julieta.
O coração que já saltava pela boca, os olhos estatelados, o suor frio e as mãos geladas, indicava o ápice de sua realização. Julieta passara a questionar-se, e existiu.
Ouviu ainda  a voz do segurança que dizia:
- Senhorita, por favor, precisa sair!
E ainda com lágrimas nos olhos, saiu com passos lentos e um olhar como se tivesse visto ouro; eles brilhavam. Tinha a certeza de que era, conseguia ser.
Não foi à escola neste dia, e seus pais sem saber o que estava acontecendo não entendiam tal inédito comportamento de Julieta. Ela havia se tornado pela primeira vez perceptível.
Ao chegar a casa, Julieta ainda com a mancha de café em sua saia do dia anterior, sem muito estardalhaço e com a mesma vontade insossa de viver, sempre monótona e passageiramente. Sentou-se em frente a tevê, e como de costume, por ali permaneceu. Porém, sem o terço.