domingo, 14 de maio de 2017

Tributo à obra e à Memória de Antonio Candido - Prof. Dr. Cícero César, do Curso de Letras das FIC/RJ

ANTONIO CANDIDO, INFATIGÁVEL ARTESÃO

Cícero César Sotero Batista[1]


 INTRODUÇÃO

Sou um homem de poucas memórias. Talvez por isso tenha me imposto, na medida do possível, a empreitada de preservá-las. É coisa miúda, admito, mas é aquilo que tenho para apresentar aos leitores deste blog.

De Antonio Candido (1918-2017), muito se aproveita, caros leitores. Estamos diante de um dos nossos maiores críticos literários. Quando vejo jovens ensaístas que enumeram seus capítulos,  lembro-me imediatamente de Antonio Candido.Sabe aquele texto fluido, de uma clareza ímpar, com cada palavra em seu devido lugar, sem afetação, sem nenhuma sombra de verniz retórico? Pois é, eis um dos efeitos da leitura que podem ser provocados quando o leitor se vê diante de um texto de Antonio Candido.




A isto se acrescenta a figura de um velhinho simpático, sempre muito elegantemente vestido. Um velho de bigodes, o que até pouco tempo atrás seria exemplo de alguém ultrapassado. Em suma, a imagem de Antonio Candido, registrada em fotografias,  corresponde à imagem do “scholar” tradicional, com a diferença que, se percorremos a obra do mestre, entre tantas coisas a aprender, perceberemos que lhe falta aquele ranço de literatice que transforma a literatura em assunto difícil, inalcançável para os leigos, que, por sua vez, em sua surda revolta, viram as costas para o que a literatura tem de melhor, que é a capacidade de investigar a sociedade e, em última análise, a humanidade.
Este "artiguinho" tem como objetivo apresentar, ainda que brevemente e de uma perspectiva pessoal, a importância de Antonio Candido para a formação dos professores de Letras. Para tanto, pretende-se comentar algumas obras do mestre, além das obras daqueles que sobre ela debruçaram. Finalmente, atendo a um pedido do professor Erivelto Reis, que, mesmo sendo mais jovem do que eu, é uma das pessoas que mais me fazem trabalhar. Obviamente, este blog não pertence ao professor Erivelto Reis, mas à comunidade de leitores, isto é, a vocês, o que me obriga a dar crédito onde o crédito é devido e estender o agradecimento às minhas  coordenadoras, Arlene Figueira e Norma Maria, pela possibilidade de lhes falar.
Quando falece um(a) autor(a) de importância, é frequente ler nos jornais uma série de publicações a respeito do legado que ele nos deixa.  A relevância social que ele(a) possui faz com que o momento de perda se transforme em um momento de balanço, de uma análise ainda que sucinta da contribuição que sua reflexão tem para iluminar a realidade brasileira.
Imagino que os  jornais de grande circulação do país informaram, na edição de sexta-feira, dia 12 de maio, que o professor universitário e crítico literário  Antonio Candido tinha falecido, aos 98 anos, que tinha sido casado com Gilda de Melo e Souza, também crítica brilhante, e que deixava três filhas. 
Como sábado é o dia dos suplementos literários, aguardei as edições de sábado para saber o que os jornais falariam de Antonio Candido. Não tive acesso às publicações dos jornais de São Paulo, mas, a julgar a edição de O Globo, a única que de fato li, não estava enganado a respeito do conteúdo das matérias.Na primeira página, afirmava-se que Antonio Candido tinha contribuído para “decifrar a identidade nacional por meio do estudo da literatura”, abrindo espaço para as considerações de praxe acerca da importância de sua obra e para um documentário “inédito” que, salvo engano, ainda pode ser assistido na integra pelo YouTube. Isto é, o documentário 3 Antonios e um Jobim (1993), dirigido por Dodô Brandão, é inédito, por não ter sido exibido em salas de cinema; mas pode ser visto por meio de cópias ilegais do YouTube. [https://www.youtube.com/watch?v=IudtNg9-pxA]* [Link fornecido pelo editor] 
Prefiro não comentar a ilegalidade ou não de se assistir ao documentário que nem foi exibido nos cinemas. Entretanto, não posso deixar de dizer que as matérias do caderno “Prosa” do Globo, apesar de corretas, me pareceram breves em demasia quando comparadas com a importância do homenageado.
Outros autores, cujas ideias circulam muito mais do que as minhas, já tinham observado que o suplemente literário, outrora tão importante, tinha sido reduzido à publicação de pequenas resenhas e a anúncios de novidades literárias ou a de comentário sobre livros fora de circulação.  Não me cabe uma explicação mais precisa das causas que levaram o jornal a tal triste enxugamento, restando-me apenas a comentar, no calor da hora, um de seus efeitos: se a literatura enquanto assunto nacional parece ter deixado de ser pão diário dos leitores, isto é tanto prejudicial quanto um sinal dos tempos, sendo necessário se levantar em protesto.

1 SINAL DOS TEMPOS

Falando em “sinal dos tempos”, eu recebi a notícia do falecimento de Antonio Candido por meio de uma mensagem de What´s app. Raul Machado Borges, amigo meu, professor de história, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre a obra de Chico Buarque. Nela, Raul Borges comentou as facetas de cancionista,  dramaturgo e romancista de Chico Buarque, à luz de autores como Roberto Schwarz, Antonio Candido e Vladimir Safatle.
Por razões que desconheço, a dissertação não está disponível no banco de  teses e dissertações da UFRJ*,  o que é um pena, pois se trata de um trabalho digno de ser lido. Em uma época de temor como a nossa, valeria muito apenar lê-la, se não na íntegra, pelo menos os capítulos que se referem ao teatro de Chico Buarque, porque nos mostram como o autor conseguiu aclimatar para a realidade brasileira da década de 1970 obras de grandes como Eurípedes, na qual Gota d´ água se baseia,  e Brecht, na qual Ópera do Malandro se baseia. Quem sabe não o convenço um dia de publicar ao menos esses trechos em um artigo para a Traduzir-se, nossa revista eletrônicas de letras.
Digo de antemão que a influência de Antonio Candido sobre o  trabalho de Raul Borges não se restringe à citação a Antonio Candido no corpo do texto e na bibliografia. Isto é correto e pode ser observado ao longo do trabalho, mas falo de outro assunto. É que Raul Borges, ao ler diversos textos de Antonio Candido, começa a retirar outras e mais frutíferas lições do mestre sobre as quais eu gostaria de comentar. Ao lado do assunto da realidade brasileira e da pergunta sobre o que isto significa, é possível dizer que os argumentos da exposição e o plano de trabalho são influenciados pela escrita de Antonio Candido, que é segura, primorosa.  Trata-se de um exemplo a ser seguido, pois, se o diabo mora nos detalhes, é preciso lutar com palavras para se expressar bem, o que se obtêm com esforço, mas que o leitor não percebe, como se fosse um passe de mágica.   



2 ANTONIO CANDIDO, O PROFESSOR DOS MESTRES

Não podemos nos esquecer desta lição de Antonio Candido: é preciso ler a obra quantas vezes for  necessário. Isto quer dizer que é a leitura da obra o passo decisivo para sua interpretação. Muitas vezes, em alguns trabalhos acadêmicos, observa-se uma preocupação excessiva com o referencial teórico, como se ele, por si só, garantisse a qualidade do trabalho que está sendo produzido. De fato, sem referencial teórico não se faz um trabalho acadêmico e muitas das vezes  o objetivo do trabalho passa em por em perspectiva visões que são complementares ou discordantes, a depender do caso.
Entretanto, pode-se ler a afirmação  sobre a necessidade de se ler atentamente uma obra, quantas vezes for necessário, de outra maneira, o que  salientará uma das grandes preocupações de Antonio Candido: a salvaguarda da literatura nacional. Deve-se ler a literatura brasileira reconhecendo seus pontos fortes, mas também sem o ufanismo exagerado  que é também tão típico entre nós. É preciso que se compreenda a questão literária de diversas perspectivas, como um sistema em que estão em funcionamento uma relação  em que mutualmente se influenciam autores, obras e público. Aliás, Antonio Candido muito se preocupava com a formação de professores que fossem bons leitores, leitores fortes, leitores críticos. 
Daí sua preferência em falar para um público composto de estudantes de graduação, se entendo bem, em vez de se restringir ao público da pós-graduação. Creio que a afirmação acima fique mais clara à medida que se discute que a Faculdade de Letras, como qualquer instituição de ensino superior, é palco de grandes disputas políticas e de enormes vaidades pessoais. É palco, em suma, de um jogo de poder, de diversas correntes que podem ou não entrar em conflito, para dizer o mínimo. Quando Antonio Candido, reconhecidamente um grande crítico, dá palestras a um público ainda em formação, na verdade, ele está sendo coerente com a sua trajetória de professor que acredita no que outrora se chamava de humanista.



Há em Antonio Candido, como em tantos outros grandes críticos de literatura, uma preocupação moral, pois mudanças sociais profundas precisam de práticas também profundas.  Há uma pergunta muito pertinente a esse respeito que agora exponho: “Então, quem ensinará aos professores?” Professores como Antonio Candido, que enxergam o ensino de literatura como um direito de todos – não como um privilégio de poucos, que, em grande parte, usam a literatura e a filosofia como uma espécie de verniz social, como um assunto sobre o qual não se pode ser ignorante, mas sem tocar nas questões fundamentais do que significa a literatura.
Em época de profundo temor como a nossa, não se pode deixar de observar tal importante papel da literatura, nas faculdades de letras e nas escolas de ensino médio e, talvez, devêssemos reservamos algum tempo para refletirmos sobre sua impotência e sua importância. Tenho dito que é muita oportuna a palestra sobre a importância da Faculdade de Letras, a se realizar no dia 23 de maio deste ano, com a presença de grandes professores de outras instituições de ensino. Afinal de contas, o assunto diz respeito a todos os profissionais, já formados ou em formação,  que estejam cientes da pertinência da discussão. Por serem professores inteligentes, há poucas dúvidas de minha parte que um dos assuntos a serem discutidos nas palestras passará pelo exemplo de professor que foi Antonio Candido, para além de sua obra.


3 ALGUNS COMENTADORES DE ANTONIO CANDIDO

Mas quais são os livros para aqueles leitores que gostariam de ler alguns comentadores de Antonio Candido? Por motivos de urgência, citarei os títulos que tenho à disposição na minha biblioteca. Trata-se obviamente de uma lista que não se pretende exaustiva, mas que pode vir a calhar ainda assim, uma vez que se trata de nomes que, creio, figuraram na lista de comentadores de Antonio Candido.
Destaco:
1) Antonio Candido: a palavra empenhada (1994), de Celia Pedrosa, que comenta os valores estéticos, teóricos que fazem de Antonio Candido um mestre entre os mestres; 

2) Sequências Brasileiras (1999), de Roberto Schwarz, que dedica a primeira parte do livro a uma interpretação das ideias principais de Antonio Candido;

3) Textos de intervenção (2002), de Vinicius Dantas, que  se divide em dois volumes: o primeiro é uma antologia de textos, de origem diversa, de Antonio Candido, o que contribui para se dar uma ideia do fundamental escritor que ele foi; o segundo, uma biografia de Antonio Candido que é também um índice remissivo, pois nele é possível se encontrar onde as obras foram originalmente publicadas;

4) Literatura e Sociedade (2005), livro de ensaios organizado por André Bueno, em que é possível encontrar um ensaio que Wellington escreve sobre Formação  da literatura brasileira: momentos decisivos, livro fundamental de Antonio Candido que trata do Arcadismo e do Romantismo da perspectiva do sistema autor-obra-público;


5) De pedra e de carne (2012), de Marcos Pasche,  que escreve uma resenha sobre o livro de Haroldo de Campos O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira (2011), que tem como objetivo incluir a obra de Gregório de Matos, poeta barroco, no cânone da literatura brasileira.  Afora as intenções polêmicas, o livro de Haroldo de Campos  é um exemplo entre outros de que os grandes se leem e bem, o que me parece ser um ponto a mais para a tese que Antonio Candido levantou sobre a importância de estar em funcionamento o sistema autor-obra-público.



4 ALGUMAS OBRAS INDISPENSÁVEIS DE ANTONIO CANDIDO

De certa maneira, a polêmica entre grandes críticos é bem-vinda, necessária e inevitável. Entretanto, não me cabe aqui me alongar muito nesta polêmica, bastando-me afirmar que há e haverá espaço para revisões de qualquer ordem e que não devemos permitir que uma leitura crítica seja considerada definitiva, pois afinal a crítica ela mesma sofre os efeitos de seu tempo.
Disse acima que uma das lições de Antonio Candido que mais me marcaram diz respeito à leitura que devemos fazer das obras-tutores. Creio que o mesmo pode ser aplicado no que diz respeito à crítica, querendo afirmar com isso que se deve preferir a leitura dos originais à leitura de comentadores, por mais importantes que eles seja, dito de outra maneira, é preciso ler a obra-tutor e sua fortuna crítica com o mesmo entusiasmo, em vez de simplesmente tentar uma leitura a fórceps da obra-tutor, para que a teoria que  se justifique a teoria que se adotou.
Por sorte, enquanto eu fazia a minha pós-graduação, nos meados dos anos 2000, os livros de Antonio Candido eram republicados, poupando-me do esforço de procurá-los em sebos, virtuais ou não, ou em bibliotecas públicas. Diga-se de passagem, é possível se medir a qualidade de uma biblioteca a partir da atualização constante de seus títulos. 
Outra ressalva, atualizar não significa necessariamente comprar os livros mais recentes, pois há muitos títulos de clássicos sem os quais não podemos desenvolver bons trabalhos. Dito isto, é com muito prazer que lhes digo, caros leitores, que muitas das obras de Antonio Candido fazem parte do acervo da nossa biblioteca das FIC, restando perguntar aos bibliotecários se elas estão disponíveis para empréstimo ou  não.
A exemplo do que fiz a respeito da fortuna crítica, citarei, por questões de urgência, os livros de Antonio Candido de que disponha na minha biblioteca. Não gostaria que tal gesto fosse tomado como exibicionismo de minha parte, mas sobretudo como um dos deliciosos ossos do ofício da nossa profissão. Estudar letras e literaturas implica a compra de livros e, se possível, sua eventual leitura, uma vez que os livros, pelo menos até hoje, não se leem sozinhos, havendo a necessidade de um interprete ou de um mediador.
Destaco:
1) Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos 1750-1880 (2006), que é um dos clássicos dos estudos brasileiros;

2) Iniciação à literatura brasileira (2007), uma versão resumida do Formação, escrita para o público estrangeiro, com o importante acréscimo da discussão sobre o Barroco, muito provavelmente devido à polêmica com Haroldo de Campos;


3) Tese e antítese (1978),   livro de ensaios que contém “O homem dos avessos”, artigo que versa sobre o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa;


4) A educação pela noite, que contém o artigo “Poesia e ficção na autobiografia”, que mostra as estratégias narrativas de memorialistas como Pedro Nava;

5) Vários escritos (2004), em que há  os artigos “Esquemas de Machado de Assis”, “Inquietudes na poesia de Drummond” e o “Direito à Literatura”;  

6) O discurso e a cidade (2004), que contêm o artigo “Dialética da malandragem”, em que Antonio Candido consegue enxergar o funcionamento da sociedade brasileira do primeiro reinado a partir da leitura do romance Memórias de um Sargento de milícias, de  Manuel de Antonio de Almeida, e  o artigo “De cortiço a cortiço”, em que Antonio Candido examina a acumulação capitalista à brasileira, em fins do século XIX,  a partir  do romance O cortiço, de Aluisio de Azevedo.

Haveria outros títulos, logicamente, mas não quero me estender neste primeiro momento. Talvez uma quantidade de livros de um mesmo autor afaste mais os leitores do  que os aproxime da literatura em questão, uma vez que, no nosso tempo, uma das questões mais urgentes diz respeito ao tempo – muito embora se possa dizer que se dedique muito mais tempo do que o necessário a conversas pelas redes sociais do que se deveria.
Porque, não é difícil se chegar à conclusão de que  há uma quantidade enorme de livros que são indispensáveis para uma formação à altura dos nossos desafios. O que implica uma seleção, sem a qual ficaremos enfeitiçados pela floresta insidiosa  criada a partir das grandes obras, sem levarmos de volta à aldeia o tesouro que procurávamos.
Entretanto, lutemos. Como um professor meu disse certa vez em uma palestra sobre o centenário de falecimento de Machado de Assis, “Sem crítica, celebração é conformismo”.  Talvez este fatídico e temeroso mês de maio devolva a força aos professores, estas velhas tartarugas que ainda têm muito a dizer.     



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