quarta-feira, 29 de março de 2017

Ensaio: "O Professor pode ser o herói do filme?", do Professor Gustavo Bernardo Krause - Cedido gentilmente para divulgação no feucnel.blogspot.com

O PROFESSOR PODE SER O HERÓI DO FILME?

Professor Gustavo Bernardo Krause (UERJ)
HOJE ACORDEI PRA LUTA! INTELECTUAIS PELA UNIVERSIDADE PÚBLICA - IMPERDÍVEL
O ataque cerrado que ora sofre a escola e a universidade pública tem relação direta com a maneira como a sociedade vê o professor. Essa visão parece, na maior parte das vezes, negativa. Embora tome formas específicas entre nós, esse não é um problema exclusivamente brasileiro. “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”, diz-se em todas as línguas. A repetição do nefasto ditado sugere que o professor é um profissional, digamos, menor do que os outros, porque não produz conhecimento, apenas o reproduz.
Quantos de nós não despertamos mal disfarçados semblantes de piedade ao contarmos para a família que resolvemos ser professores? Parece que pensam: coitado, ele podia ser coisa melhor. Na minha própria casa, o drama foi maior. Quando disse à minha mãe, décadas atrás, que largava engenharia para fazer letras, ela chorou um mês inteiro: seu filho “acabaria” professor.
É essa visão a respeito da profissão que justifica, em surdina, a manutenção de baixos salários e péssimas condições de trabalho para os professores, principalmente da escola pública. Em teoria, todo mundo concorda sobre a importância da educação, até mesmo candidatos a cargos públicos que mal passaram pela escola. Na prática, a profissão de professor é tão desvalorizada que não atrai os melhores alunos da escola – ou seja, atrai apenas os alunos mais fracos, ou os mais desfavorecidos economicamente.
Ora, se o melhor método de educação é o do exemplo, como sabem os pedagogos desde os gregos antigos, precisaríamos que os professores fossem recrutados entre os melhores alunos, como acontece nos países líderes em educação — Finlândia, Dinamarca e Coreia do Sul, por exemplo. Para que isso aconteça, é preciso que a sociedade de fato acredite que a educação é fundamental, e não apenas finja que acredita.
A contradição entre o discurso da sociedade e a sua prática oficial passa a impressão, muitas vezes, de que só teremos uma escola de qualidade quando não houver mais professores — como se nós é que fôssemos o problema. O reconhecimento de semelhante percepção negativa responde de modo igualmente negativo à pergunta do título deste artigo. Claro que o professor nunca pode ser o herói do filme. Admite-se, no máximo, que ele seja um coadjuvante bem chinfrim.
Todavia, o cinema mesmo não concorda com isso. Em algum lugar menos pragmático e mais afetivo, das pessoas e da sociedade, o professor assume um lugar diferente. Qualquer espectador de cinema, em especial quem gosta de uma boa sessão da tarde, é capaz de listar vários filmes em que o herói ou heroína é um professor ou professora que, com frequência, comove profundamente a plateia. Ora, isso significa que no íntimo todos temos a imagem do professor herói, aquele que muda a nossa vida e nos faz não apenas saber mais, mas também ser mais, tornando-nos melhores do que éramos.
Quem nunca encontrou esse tipo de professor sente a falta dele por toda a vida. Quem já o encontrou, por sua vez, sonha em reencontrá- lo de algum modo — por exemplo, tornando-se ele mesmo um mestre, ou seja, tornando-se ele mesmo um professor que fará a diferença na vida senão de todos, ao menos de alguns alunos, e já terá valido a pena.
A contradição se mantém: prezamos mal a profissão de professor, mas a despeito disso sonhamos com o encontro ou reencontro com um grande professor. Ao menos, esse encontro ou reencontro se dá na ficção, literária ou cinematográfica.
No cinema, pensemos no professor Mark Thackeray, de "Ao mestre, com carinho" (1967), vivido por Sidney Poitier; no professor John Keating, de "Sociedade dos poetas mortos" (1989), vivido por Robin Williams; no professor Joe Louis Clark, de "Meu mestre, minha vida" (1989), vivido por Morgan Freeman; no Mr. Holland de "Adorável professor" (1995), vivido por Richard Dreyfuss; no professor Dewey Finn, de "Escola de rock" (2003), vivido por Jack Black; no professor François Marin, de "Entre os muros da escola" (2008), vivido por François Bégaudeau; na professora Catharina, de "Uma professora muito maluquinha" (2010), vivida por Paola Oliveira; por fim, nos professores Jack Marcus e Dina Delsanto, de "Palavras e imagens" (2014), vividos por Clive Owen e Juliette Binoche.
Mas o mais bonito filme de professor, o que mais mexeu com este professor que vos escreve, é pouco conhecido. Trata-se do filme "Wo de fu qin mu qin" (1999), em inglês "The Road Home", em português "O caminho para casa", dirigido por Zhang Yimou. A tradução literal do título em mandarim seria algo como “Os meus pais”. Esse título e o enredo apontam para o professor como uma espécie de metáfora paterna.
O filme começa em preto e branco, com Luo Yusheng, vivido por Sun Honglei, voltando à aldeia natal para o funeral do pai. A mãe exige o cumprimento de uma tradição em desuso: que o caixão do pai seja trazido do hospital da cidade para ser enterrado na aldeia, mas num cortejo a pé, em pleno inverno rigoroso. O objetivo do cortejo é que o morto não esqueça o caminho de casa. Enquanto tenta demover a mãe, Luo relembra em flashback a história de amor deles, toda mostrada em deslumbrantes cenas coloridas.
O espectador volta junto até 1958, quando Luo Changyu, vivido por Zheng Hao, chega à aldeia para assumir o posto de professor da pequena escola primária. Acima do quadro-negro da escola, a foto de Mao Tsé-Tung. Os homens da aldeia constroem juntos a escola, enquanto as mulheres cozinham para eles.
À jovem mais bonita do lugar, Zhao Di, vivida por Zhang Ziyi, compete tecer a bandeira vermelha que será enrolada na viga principal do telhado. O professor, depois, não deixará que coloquem laje nele, para a viga ficar aparente e, assim, ele poder olhar sempre para a bandeira enquanto dá aula. Desse modo, o símbolo nacional recebe conotação inteiramente diferente. Já na chegada do professor eles trocam olhares e logo se apaixonam.
Os encontros entre eles, difíceis naquela aldeia tão pequena, tornam- se mais difíceis ainda porque o professor é chamado de volta à cidade pelo governo, sugerindo-se que ele seja um dissidente da revolução cultural de Mao. Não sabemos por que ele seria um dissidente até o final do filme, quando nos é dito que ele criou uma cartilha própria para ensinar as crianças a ler e a escrever. Essa cartilha contém frases muito simples, que, todavia, apontam para a necessidade de olhar com os próprios olhos e pensar com a própria cabeça.
Isso significa que o professor recusou a cartilha doutrinária do partido, embora essa cartilha e a recusa não apareçam no filme. O professor Luo, punido, tem de ficar mais de dois anos longe da aldeia. Zhao o espera com paixão, às vezes permanecendo horas na neve. No meio do inverno, tenta chegar a pé até a cidade, mas desmaia e adoece gravemente.
Luo volta por duas vezes, desesperado por encontrar Zhao, na primeira delas desobedecendo ao partido. Em ambas, Zhao sabe que ele voltou porque de sua casa escuta a voz do professor dando aula. Junto com o resto da aldeia, ela vai para o lado de fora para escutá-lo, deixando todos emocionados com a sua devoção.
Finalmente eles ficam juntos, sem que o espectador testemunhe sequer um beijo. No entanto, os olhares intensos e a fixação da câmera em detalhes, como a tigela de porcelana em que o professor comia, narram com sobras esse amor absoluto.
Voltamos então ao presente, quando Luo, o filho do
professor Luo, se convence a atender o desejo da mãe e contrata homens de outra aldeia para levar o pai de volta para casa. A notícia se espalha, e mais de cem homens, a maioria ex-alunos do professor que ensinou por quarenta anos, aparecem para participar no inusitado cortejo fúnebre. Ninguém aceita ser pago, nem os que foram contratados. Todos se revezam carregando o caixão a meio de uma forte nevasca, enquanto gritam com o morto para que ele não esqueça o caminho de casa.
Com o professor enterrado, a mãe diz que o desejo do pai é que o seu filho, que não seguiu a carreira, desse pelo menos uma aula na sua vida. Na manhã seguinte, acorda com a voz do filho dando uma aula na antiga escola, e usando a mesma cartilha do seu pai.
O professor Luo deixa para o seu filho, para os seus alunos, para os chineses e para os espectadores uma herança, ou melhor, uma cartilha de paixão, independência, dignidade, constância e beleza. Não resisto à tentação de afirmar que essa cartilha só podia ser deixada por um professor — ou melhor, por um mestre.
É com esse tipo de mestre que governadores, secretários, ministros da Educação e do Supremo querem acabar, quando falam e agem para acabar com a escola e a universidade públicas. Aquele mestre que não concorda que algumas pessoas podem aprender enquanto outras não podem e não devem. Aquele que, mais do que ensinar dados e números, inspira seus alunos, com o seu exemplo, a pensar, a duvidar e a sonhar.
Sonhar com um país sem miséria, com um país sem fome, com um país sem racismo. Sonhar com um país com dignidade, com liberdade e com conhecimento. Sonhar com um país em que os professores-mestres saiam da tela do cinema e ocupem o lugar que lhes é de direito: a sala de aula das escolas e das universidades públicas.
In "Hoje acordei pra luta" (2017). Organização de Phellipe MarcelIuri Pavan e Mauro Siqueira. Rio de Janeiro: EdUERJ.

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